O fãs brasileiros da série Cormoran Strike, escrita por J.K. Rowling sob pseudônimo de Robert Gailbraith, já podem comemorar! O terceiro livro (em inglês "Career of Evil"), recebeu o título de "Vocação para o Mal" e será lançado no Brasil no dia 02 de abril de 2016, pela Editora Rocco. A edição é em brochura e capa dura e a tradução ficou por conta de Rita Vynagre.
A editora, responsável também pela tradução de "O Chamado do Cuco" e "O Bicho-da-Seda" - os dois primeiros livros da série - disponibilizou em seu blog o primeiro capítulo de "Vocação para o Mal":
I choose to steal what you choose to show
And you know I will not apologize…
You’re mine for the taking.
I’m making a career of evil…
Blue Öyster Cult, “Career of Evil”
Este Não É o Verão do Amor
Ele não conseguira limpar todo o sangue da mulher. Ficou uma linha escura, feito um parêntese, sob a unha do dedo médio da sua mão esquerda. Ele decidiu raspá-la, embora lhe agradasse muito vê-la ali: uma lembrança dos prazeres da véspera. Depois de um minuto esfregando em vão, ele pôs a unha manchada de sangue na boca e chupou. O gosto de ferro lembrava o cheiro da enxurrada esguichando desenfreada no piso frio, borrifando as paredes, ensopando seu jeans e transformando as toalhas de banho pêssego — felpudas, secas e elegantemente dobradas — em trapos encharcados de sangue.
As cores pareciam mais vivas esta manhã, o mundo, um lugar mais aprazível. Ele se sentia sereno e revigorado, como se a tivesse absorvido, como se a vida dela tivesse penetrado nele por transfusão. Elas lhe pertenciam depois que as matava: era uma posse que ia além do sexo. Mesmo saber como pareciam no momento da morte era de uma intimidade que ultrapassava qualquer coisa que dois corpos vivos poderiam experimentar.
Com um arrepio de excitação, refletiu que ninguém sabia o que ele havia feito, nem o que planejava fazer em seguida. Chupou o dedo médio, feliz e pacificado, encostando-se na parede morna ao sol fraco de abril, de olho na casa do outro lado da rua.
Não era uma casa elegante. Banal. Sem dúvida, um lugar melhor para se morar do que aquele apartamento minúsculo onde as roupas endurecidas do sangue de ontem estavam em sacos de lixo preto aguardando a incineração, e onde suas facas reluziam, lavadas com água sanitária, escondidas atrás do sifão embaixo da pia da cozinha.
A casa tinha um pequeno jardim na frente, grades pretas e um gramado que precisava ser aparado. As duas portas principais brancas foram espremidas lado a lado, mostrando que a construção de três andares fora convertida em apartamentos em cima e embaixo. Uma garota chamada Robin Ellacott morava no térreo. Embora tenha feito de tudo para descobrir seu nome verdadeiro, mentalmente ele a chamava de A Secretária. Acabara de vê-la passar diante da janela saliente do térreo, facilmente reconhecível pelo cabelo claro.
Observar a Secretária era um bônus, um complemento prazeroso. Ele tinha algumas horas de sobra, assim decidira vir vê-la. Hoje era um dia de descanso, entre as glórias da véspera e o amanhã, entre a satisfação do já realizado e o entusiasmo pelo que aconteceria depois.
A porta da direita abriu inesperadamente e A Secretária saiu, acompanhada de um homem.
Ainda encostado na parede morna, ele olhou para a rua toda, virado de perfil, para dar a impressão de que esperava um amigo. Nenhum dos dois prestou a menor atenção nele. Seguiram pela rua lado a lado. Depois de lhes dar um minuto de vantagem, decidiu segui-los.
Ela usava jeans, um casaco leve e botas rasteiras. O cabelo ondulado e comprido era ligeiramente arruivado, agora que ele podia vê-la à luz do sol. Pensou ter detectado certa reserva entre o casal, que não conversava.
Ele sabia interpretar as pessoas. Tinha interpretado e seduzido a garota que morreu ontem em meio às toalhas pêssego encharcadas de sangue.
Ele os seguiu pela extensa rua residencial, de mãos nos bolsos, caminhando devagar como quem vai às compras, seus óculos escuros um lugar-comum naquela manhã luminosa. A leve brisa da primavera balançava suavemente as árvores. No final da rua, a dupla à frente virou à esquerda em uma via pública larga, movimentada e ladeada de escritórios. O vidro das janelas refletia o sol enquanto eles passavam pelo prédio da junta administrativa de Ealing.
Agora o colega de apartamento, ou namorado, da Secretária, seja o que for — de perfil arrumadinho e queixo quadrado — estava falando com ela. Ela deu uma resposta curta e não sorriu.
As mulheres eram tão insignificantes, más, sujas e mesquinhas. Vacas ressentidas, todas elas, esperando que os homens as façam felizes. Só quando jazem mortas e vazias diante de você, é que se purificam, tornam-se misteriosas e até maravilhosas. Então elas são inteiramente suas, incapazes de discutir, lutar ou ir embora, são suas para você fazer o que quiser. Ontem o cadáver da outra estava pesado e mole, depois de ele ter drenado seu sangue: seu joguete em tamanho natural, o brinquedo dele.
Por todo o movimentado centro comercial Arcadia, ele seguiu A Secretária e o namorado, deslizando atrás deles como um fantasma ou um deus. Será que os consumidores de sábado chegavam a vê-lo, ou ele de algum modo estava transformado, duplamente vivo, com o dom da invisibilidade?
Eles pararam em um ponto de ônibus. Ele ficou rondando por perto, fingindo olhar pela porta de um restaurante indiano, uma pilha alta de frutas na frente de um mercadinho, máscaras de papelão do príncipe William e de Kate Middleton penduradas na vitrine de um jornaleiro, observando o reflexo deles no vidro.
Iam pegar a linha 83. Ele não tinha muito dinheiro no bolso, mas era um prazer tão grande observá-la que ele ainda não queria que terminasse. Enquanto embarcava atrás dos dois, ouviu o homem mencionar Wembley Central. Comprou uma passagem e seguiu o casal até o andar de cima.
Os dois encontraram um banco duplo e sentaram juntos bem na frente do ônibus. Ele pegou um lugar próximo, ao lado de uma mulher mal-humorada que foi obrigada a deslocar suas sacolas de compras. As vozes dos dois às vezes eram ouvidas por cima do zum-zum dos outros passageiros. Quando não falava, A Secretária olhava pela janela, sem sorrir. Ela não queria ir aonde os dois estavam indo, disso ele teve certeza. Quando ela tirou uma mecha de cabelo dos olhos, ele notou que havia uma aliança de noivado. Então ela ia se casar… ou assim pensava. Ele escondeu um sorrisinho na gola levantada do casaco.
O sol quente do meio-dia entrava pelas janelas pontilhadas de sujeira do ônibus. Um grupo de homens entrou e ocupou os bancos em volta. Dois deles usavam camisas de rúgbi vermelhas e pretas.
Ele sentiu, de repente, que o esplendor do dia havia diminuído. Aquelas camisas, com a estrela e o crescente lunar, traziam associações de que não gostava nada. Lembravam-no de uma época em que não se sentia um deus. Ele não queria o seu dia feliz manchado e maculado por antigas lembranças, lembranças ruins, mas sua euforia estava subitamente se esvaindo. Agora furioso — um adolescente do grupo o encarou, mas na mesma hora desviou os olhos, alarmado —, ele se levantou e foi para a escada.
Um pai e o filho pequeno seguravam firme a barra ao lado das portas do ônibus. Uma explosão de raiva na boca do estômago: ele é que devia ter tido um filho. Ou melhor, ele ainda devia ter um filho. Imaginou o menino ao lado dele, olhando-o de baixo, venerando-o como a um herói —, mas seu filho se foi há muito tempo, e tudo por culpa de um homem chamado Cormoran Strike.
Ele se vingaria de Cormoran Strike. Ia acabar com ele.
Ao chegar à calçada, olhou o vidro frontal do ônibus e teve um último vislumbre da cabeça dourada da Secretária. Ele a veria novamente em menos de 24 horas. Este pensamento ajudou a acalmar a fúria repentina provocada pela visão daquelas camisas do Saracens. O ônibus se afastou aos roncos e ele seguiu na direção contrária, tranquilizando-se ao caminhar.
Tinha um plano fantástico. Ninguém sabia. Ninguém suspeitava. E havia algo muito especial esperando por ele na geladeira em casa.
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