Joanne Rowling publicou ontem (17), no jornal britânico The Guardian, um texto em que aborda com detalhes a questão da institucionalização de crianças.
A causa, que Jo está envolvida há anos, levou à criação da Lumos, sua entidade filantrópica para acabar com este problema de ordem mundial.
No artigo, intitulado "Isn't it time we left orphanage to fairytales?" (Não está na hora de deixamos orfanatos para os contos de fadas?), a autora de Harry Potter conta os primórdios de seu interesse pelo assunto e alarma uma triste verdade: grande parte dos ''órfãos'' dos orfanatos, na verdade, não são órfãos.
Clique em Mais informações para ler na íntegra a publicação de Rowling, traduzida ao português por Gabriel Pimentel.
''Era uma fotografia em preto e branco em um jornal. Mostrava
um pequeno garoto, preso em uma cama enjaulada em uma instituição residencial.
Suas mãos agarradas no que parecia uma cerca de animais contendo ele, e sua
expressão era agonizada. Não existiria a Lumos – a instituição de caridade
dedicada em fechar instituições para crianças e os chamados orfanatos – se não
houvesse tido primeiramente essa imagem. Eu conhecia o vergonhoso impulso
imediato de virar a página, escondê-la, não olhar.
Eu poderia tentar justificar esse impulso dizendo que eu
estava gravida na época, sentindo-me vulnerável e hormonal. A triste verdade é
que minha reação instintiva para aquela fotografia poderia ser vista com uma metáfora
para a atitude que permitiu o injustificável encarceramento de 8 milhões de
crianças ao redor do mundo acontecesse, com pouca indignação ou comentários.
Envergonhada daquela negação reflexiva de olhar, eu me forcei a virar a página
de volta para a imagem e ler o artigo.
O artigo contava de uma instituição vinda dos pesadelos,
onde crianças tão jovens quanto 6 anos de idade eram engaioladas na maior parte
do dia e da noite. Eu peguei o artigo da página, e no dia seguinte eu comecei
escrevendo cartas para todo mundo que eu podia pensar com influência nesse
assunto.
Esses esforços levaram rapidamente ao estabelecimento da
Lumos, nomeada em homenagem ao feitiço que criei em Harry Potter para trazer
luz a alguns lugares sombrios e assustadores. Parte do nosso trabalho na Lumos
é lançar luz na vida dessas milhões de crianças separadas de suas famílias, por
razões de pobreza, deficiência e descriminação.
A chocante verdade é que a vasta maioria dessas crianças tem
pais que poderiam cuidar delas. Elas não são órfãs. A maioria é colocada em
instituições por famílias que são muito pobres para provê-las, ou por
causa da falta de educação local e instalações de saúde, especialmente para
crianças com necessidades especiais. A minoria que não tem pais, ou que ficar
em casa não é uma opção interessante, são geralmente colocadas em instituições
porque não há alternativa.
A ideia de qualquer criança sendo retirada de sua família e trancafiada,
muito frequentemente em condições atrozes, é particularmente comovente nessa
época do ano. Para crianças em instituições, a vida muito frequentemente é
parecida com os contos de fada mais sombrios dos irmãos Grimm. Georgette
Mulheir, CEO da Lumos, conta como em um Natal ela levou doces para 270 crianças
em uma instituição especifica. O que ela descobriu lá foi uma pesadelo. Estava
menos vinte e cinco graus do lado de fora, o aquecedor estava quebrando,
crianças tremiam em suas camas, vestiam todas suas roupas e estavam enroladas
em cobertores surrados.
Novamente, quando eu cito as estatísticas para pessoas que
não são familiares com o assunto – 8 milhões de crianças separadas de suas
famílias ao redor do mundo – elas ficam perplexas e desacreditadas. “Como isso
pode acontecer,” elas perguntam, “sem o mundo inteiro saber?” A resposta é bem
simples: quem é mais fácil de se silenciar do que uma criança? Especialmente uma
criança com deficiência mental ou física, que é levada de sua família que foi
convencida que é pelo bem da criança, ou cujo a única alternativa é assistir
essa criança morrer de fome.
Hoje existe uma riqueza de provas cientificas que
instituições causam nas crianças um dano mensurável e muitas vezes irreparável.
Crianças institucionalizadas possuem uma chance muito menor de serem educadas e
de serem fisicamente e mentalmente estáveis. Desnutrição é muito comum. Elas
possuem uma chance muito maior de serem abusadas ou traficadas. Os efeitos em
crianças menores é especialmente crônico, com muitas falhando em se
desenvolver, ou morrendo.
O impacto de não ter amor e atenção de um cuidador dedicado
é profundo. Pode impedir o crescimento normal das crianças, atrasos no
desenvolvimento e trauma psicológico. Eu vi bebês que aprenderam a não chorar
porque ninguém vinha para atendê-los. Eu encontrei crianças tão desesperadas
por afeto que elas engatinhavam para o colo de qualquer estranho.
O dano é feito bem cedo, e ele é duradouro. Tiradas da
sociedade, crianças institucionalizadas retornam ao mundo com suas chances de
serem felizes e de terem uma vida saudável vastamente debilitada. Geralmente
incapazes de encontrar empregos, excluídas da comunidades e com mais chances de
ter um período na vida de pobreza e dependência.
Um ponto crucial é que esses efeitos terríveis se aplicam
para crianças vindas de qualquer tipo de instituição, incluindo aquelas com muitos
recursos. A solução não são murais bonitos, camas mais confortáveis ou ursos de
pelúcia. A solução é: nenhuma instituição.
A boa notícia é que esse é um problema que pode ser
totalmente resolvido. Baseado nos sucessos já conquistados em diversos países, a
Lumos estima que a institucionalização de crianças pode ser erradicada globalmente
até 2050 – no nosso tempo de vida.
Onde há investimento em educação inclusiva e saúde, onde
famílias vulneráveis recebem suporte para pobreza, emprego, problemas sociais e
médicos; onde existem lares provisórios, adoções ou outros cuidados familiares
alternativos para crianças que não podem ficam com seus pais; e onde a cultura
de institucionalizar é substituída por uma que prioriza manter famílias juntas,
crianças podem se desenvolver de forma saudável dentro de suas famílias e
comunidades.
Terminar com a pratica de manter crianças em instituições não
é só uma necessidade moral: isso faz grande sentido econômico. É bem mais
rentável dar suporte a uma criança em uma família do em uma instituição – e também
reduz custos de longo prazo, já que essas crianças possuem chances bem menores
de se tornarem dependentes [do Estado] quando adultas. Nós sabemos que nosso
modelo funciona. Desde que a Lumos começou a trabalhar na Moldávia, em 2007,
tem tido uma diminuição em 70% no número de crianças em instituições
nacionalmente, apesar da instabilidade política crônica e de Moldávia ser o
país mais pobre da Europa.
Na República Tcheca, enquanto o número de crianças sendo admitidas
em instituições foi diminuído em 16% nacionalmente no ano passado, na área de
demonstração da Lumos, eles alcançaram uma queda de 75% em admissões. É eminentemente
possível que até 2020 não tenha mais crianças em instituições na República
Tcheca.
Desde que a Lumos começou a trabalhar na Bulgária, o número
de crianças em instituições foi reduzido em 54%. Novas admissões para instituições
na Bulgária caíram 34%, e o número de cuidadores provisórios cresceu em 440%,
de 357 para mais de 1600, provendo o ambiente familiar extremamente necessário
para as crianças que iriam de outra forma estar em instituições.
Essa é uma época crucial para tirar crianças de
instituições. Os compromissos feitos pela União Europeia, pelos Estados Unidos
e pela Global Alliance for Children (Aliança Global pelas Crianças) – um grupo
de doadores públicos e privados, e ONGs, das quais a Lumos é um membro chave –
estabeleceram um importante precedente para outros doadores. Existe, agora, uma
massa crítica de competência e evidências na qual todos podemos construir.
Milhões de pessoas ao redor do mundo querem ver um fim para essa
prática danosa e desnecessário de institucionalização. Todos tem um papel a
cumprir nesse respeito, que é precisamente a ideia por trás a campanha nas
mídias sociais #letstalklumos lançada mês passado. Manter esse tópico vivo e
conscientizar as pessoas é uma parte vital para mudar o futuro para essas
crianças.
Eu recentemente me comprometi em me tornar presidente
vitalícia da Lumos. É o meu sonho que, dentro do meu tempo de vida, o exato
conceito de levar uma criança de sua família e trancafiá-la irá parecer vindo
de um mundo fictício e cruel.
J.K Rowling. Presidente e fundadora da Lumos.